Conhecer a Escola da Ponte: uma escola para ser vivida

Postado por inovar 04/09/2021 0 Comentários

Conhecer a Escola da Ponte: uma escola para ser vivida

 

Perante todo conhecimento já discutido pelos profissionais da educação, sabe-se que a aprendizagem é um processo de mudança de comportamento obtido através da experiência construída por factores emocionais, neurológicos, relacionais e ambientais que formam a identidade do indivíduo. Aprender é o resultado da interacção entre estruturas mentais e o meio ambiente. De acordo com a nova ênfase educacional, centrada na aprendizagem, o professor é co-autor do processo de aprendizagem dos alunos. Nesse enfoque centrado na aprendizagem formal, o conhecimento é construído e reconstruído continuamente.

Todavia, quando falamos sobre o espaço escolar também tratamos sobre a identidade e a cultura de ensino que neste espaço permeia. Assim, entram em cena a estrutura física da escola, a organização, a manutenção e a segurança, o que reflete directamente nas relações sociais e no processo de ensino-aprendizagem dos alunos como se fosse uma de suas casas.

Mediante comparação são muitas as nossas casas. A nossa morada é nossa casa, assim como as igrejas, os museus, os espaços de cultura, entre outras; uma delas é a escola que, embora seja diferente do espaço em que vivem os que a frequentam, exige deles o mesmo cuidado. E cuidado deriva de respeito, o princípio fundamental da ética. Respeitar implica reconhecer o outro e a existência junto com ele num tempo e local específicos. O ambiente escolar (como um espaço público no qual grande parte de nossas crianças e jovens passam seu tempo) é um dos lugares que permitem exercitar tal convívio. 

Para exemplificar tal posicionamento apresentamos a Escola da Ponte, sistema público de educação localizada no município de Santo Tirso, próximo à cidade do Porto, Portugal.

 

Escola Básica da Ponte

 “As crianças que sabem ensinam as crianças que não sabem. Isso não é exceção. É a rotina do dia-a-dia. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade. Mais que aprender saberes, as crianças estão a aprender valores. A ética perpassa silenciosamente, sem explicações, as relações naquela sala imensa”.

Foi assim que o educador brasileiro Rubem Alves resumiu uma de suas muitas surpresas com a Escola da Ponte, uma instituição pública de Portugal que, desde 1976, compreende que o percurso educativo de cada estudante supõe um conhecimento cada vez mais aprofundado de si próprio e um relacionamento solidário com os outros.

Inserida no sistema público de educação a Escola da Ponte não adota um modelo de séries ou ciclos. Lá, os estudantes de diferentes idades se organizam a partir de interesses comuns para desenvolver projectos de pesquisa. Os grupos se formam e se desfazem de acordo com os temas e a partir das relações afectivas que os estudantes estabelecem entre si.

 

Organização pedagógica

 

O processo individual de cada estudante passa por três núcleos distintos: o de iniciação, consolidação e aprofundamento. Na iniciação, ele é tutorado com maior frequência e passa a aprender as regras de convívio colectivo e os compromissos que assume com os demais e com o seu próprio processo de aprendizagem. Na consolidação, a necessidade de acompanhamento diminui, o estudante assume maior trânsito nos espaços e tempos da escola e passa a gerir de forma autónoma o currículo nacional destinado ao 1º ciclo do ensino básico. No núcleo de aprofundamento, as crianças e adolescentes assumem um comportamento bastante autónomo, participam do gerenciamento das suas actividades e de actividades do colectivo e assumem o estudo do currículo nacional do 2º ciclo.

Em vez de um único professor, os estudantes acessam todos os orientadores educativos, que os acompanham tanto nas questões de aprendizagem acadêmicas quanto comportamentais. Em vez de disciplinas, o projecto pedagógico é dividido por seis dimensões, apoiadas por docentes e pedagogos e psicólogos: linguística (Língua Portuguesa, Inglesa, Francesa e Alemã), lógico-matemática (Matemática), naturalista (Estudo do Meio, Ciências da Natureza, Ciências Naturais, Físico-Química e Geografia), identitária (Estudo do Meio, História e Geografia de Portugal e História), artística (Expressão Musical, Dramática, Plástica e Motora, Educação Física, Educação Visual e Tecnológica – E.V.T., Educação Musical, Educação Visual, Educação Tecnológica e T.I.C.), pessoal e social (Formação Pessoal, Ensino Especial e Psicologia).

Cada estudante escolhe ainda um tutor, qualquer indivíduo da comunidade escolar – funcionários, professores, pais -, que será responsável por orientá-lo no percurso pedagógico que ele estabelece para si mesmo.  Dessa forma, o aluno e seu tutor avaliam juntos como foi o processo de aprendizagem, se os objectivos foram alcançados, se ficou alguma dúvida e se a criança ou o adolescente está satisfeito com o que alcançou. No lugar de provas, o tutor e estudante estabelecem que mecanismo utilizarão para aferir a satisfação e se o conteúdo foi assimilado, em um processo bastante dialógico e em si educativo.

Segundo o projecto educativo, a escola tem como pedagogia o “Fazer a Ponte”, que visa a formação de pessoas autónomas, responsáveis, solidárias, mais cultas e democraticamente comprometidas na construção de um destino colectivo e de um projecto de sociedade que potencialize a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano.

Para tanto, a Escola da Ponte integra e corresponsabiliza todos os envolvidos da comunidade escolar na sua construção – o indivíduo se faz no colectivo e o colectivo se alimenta da singularidade de cada um.

 

Diversidade e currículo

 

Diverso, o público da escola reúne estudantes de diferentes classes sociais e muitos pais, inclusive, mudaram-se de outras regiões do país só para possibilitar aos filhos a chance de estudar na instituição. Da mesma forma, crianças e adolescentes com deficiências estudam no mesmo processo que os demais: participam dos grupos, vivenciam os processos de planejamento e auto-avaliação e discutem as regras da comunidade.

Para tanto, a escola se fortalece em sua pedagogia, reconhecendo cada estudante como único e irrepetível, igualmente integrante de uma cultura, origem e estrutura familiar singulares.  Assim, a Escola da Ponte entende que o papel do docente, da comunidade escolar e dos estudantes é apoiar que cada indivíduo se descubra e se conheça, a partir da interacção com os outros, com os diferentes. E, essa mesma descoberta é o que motiva o próprio desejo de aprendizagem.

Portanto, a ideia de currículo se estabelece de forma muito individual para cada estudante, em diálogo com o que ele – em sua unicidade – deseja descobrir sobre o outro e sobre o mundo em sua volta. Assim, a escola assume o currículo em uma dupla proposição: o currículo objectivo, que norteia e metrifica um horizonte de realização e o currículo subjectivo, que se estrutura no desenvolvimento pessoal, do projecto de vida de cada estudante. Para a pedagogia do “Fazer a Ponte”, só o currículo subjectivo (o conjunto de aquisições de cada aluno) é capaz de validar a pertinência e o sentido do currículo objectivo.

No processo de alfabetização, as crianças são convidadas a aprender “frases inteiras”, superando a lógica do beabá e da cartilha. Inspirados por Paulo Freire e pelo educador francês Célestin Freinet, a escola convida os estudantes a lerem por desejo, pela vontade de decifrar o código das palavras. Convidadas por histórias ou perguntas disparadoras, as crianças desenvolvem de forma autónoma a capacidade da escrita e leitura, cada qual no seu tempo, e no seu próprio ritmo de aprendizagem.

E, para viabilizar esse e todos os processos de investigação autónoma, os estudantes têm acesso a diferentes locus de aprendizagem e estudo, como na biblioteca – principal espaço da escola -, e nos computadores e internet. Da mesma forma, os estudantes gerem esses espaços de forma autónoma e decidem onde e como devem buscar a informação que precisam. Muitas vezes, quando a informação não está na escola, os estudantes são convidados a sair e investigar, em parceria com seus tutores, outras possibilidades e sua comunidade. Vão às bibliotecas públicas, às casas dos vizinhos, aos parques e praças da cidade – em qualquer lugar em que possam encontrar o aprendizado que desejam.

 

Na prática

 

Em uma actividade, um grupo de crianças do núcleo de iniciação Escola da Ponte decidiu investigar como funcionam os sinais de trânsito, para estudar o tema de segurança rodoviária. Depois da pesquisa inicial, saíram todos às ruas para ver “na prática” o que cada uma das placas significa. Como produto, o grupo desenvolveu e jogou um jogo da memória com os símbolos recém descobertos e como tarefa de casa, os estudantes tiveram que ajudar seus familiares e vizinhança a relembrar o significado de cada um deles.

Na mesma perspectiva, a escola disponibilizou um grande mural em que os estudantes podem escrever se precisam de ajuda e no que precisam. No espaço, os estudantes também podem contar no que podem colaborar ou ensinar aos demais. De “ensino violão” a “não entendi como se soma”, tudo é permitido – e mediado pelos próprios alunos, que aprendem, desde sempre, a acessar seus pares, sem medo de julgamento ou gozação.

Muito forte, a cultura colaborativa na escola também se faz entre os docentes. Como os editais e contratações são abertas, é normal o professor levar um tempo ou até não se adoptar ao modelo. No lugar de “preparar uma aula pronta”, o professor se cria a partir da necessidade dos estudantes e, com eles, investiga o tema a ser estudado.

Da mesma forma, os professores têm tempo e são valorizados como uma rede: apoiam-se uns nos outros para lidar com as dificuldades dos estudantes e investigar e propor acções colectivas, para toda a comunidade escolar. Festejos, campeonatos e saídas lúdicas e pedagógicas são bastante comuns e ocupam boa parte do calendário das crianças. Todas as datas, além de comemoradas, são investigadas: crianças e adolescentes estudam o porquê delas, qual o significado cultural da manifestação e constroem juntos a determinada celebração.

 

Decisões colectivas

Afim de garantir a autonomia como chave em todos os processos da escola, estudantes, pais, professores e funcionários participam de assembleias periódicas. Nas reuniões, que podem ser para discutir normas e regras colectivas ou a temática da festa de Natal, todos têm voz e podem se expressar e registar seus apontamentos.

Os mais tímidos podem também acessar uma espécie de caixa de “segredos”, no qual deixam pedidos de ajuda, reclamações, vontades. A caixa é aberta e discutida no colectivo, sem expor aquele que escreveu a mensagem.

Para validar os processos e envolver a comunidade como um todo, a escola publica todos os documentos e realiza anualmente uma minuciosa auto-avaliação, que se debruça sobre os profissionais, os estudantes e evolução da aprendizagem de cada um e sobre as decisões e processos democráticos. Com metodologia estruturada, a auto-avaliação é um processo bastante significativo para a comunidade como um todo, que assume o tempo e a importância de reflectir sobre si mesma.

Veja um exemplo de auto-avaliação da Escola da Ponte

 

Histórico

Até 1976, a escola fazia parte de um polo que concentrava mais outros cinco prédios escolares, entre escolas de educação infantil e do fundamental (antigas escolas primárias).

Nesse período, o país havia acabado de sair de uma ditadura de 48 anos e as escolas públicas se encontravam em altos níveis de precariedade. O grau de violência interna subia a cada dia, desmotivando e desmoralizando os profissionais da educação. O ensino, feito com base em manuais iguais para todos, era um dos causadores do desinteresse. Outro era a estrutura física do prédio escolar, que se encontrava em total decadência.

A equipe escolar passou, então, a questionar os problemas e deficiências daquela escola, identificando que ajustes não alcançariam a mudança esperada: era necessária uma verdadeira revolução pedagógica. E essa vontade de mudança encontrou eco nas ideias do educador José Pacheco, que, ao longo de sua vida como professor, não enxergava mais sentido nas aulas tradicionais nem no que chamava de fundamentalismo pedagógico.

Foi assim que após inúmeras discussões a equipe pedagógica da Escola da Ponte resolveu abolir as séries, provas, salas de aulas e disciplinas, alicerçando sua proposta pedagógica para o exercício da autonomia e da liberdade. Antes visto como solitário, o trabalho do professor assume um carácter compartilhado, desenvolvido em conjunto com outros professores e com estudantes, que passam a desenvolver actividades de educação de pares, em um processo de troca e construção colectiva, em que todos aprendem e ensinam ao mesmo tempo.

Com o tempo, dado seus resultados, em 2008, a escola conseguiu tornar-se autónoma do Ministério da Educação e Ciência (MEC) de Portugal, por meio de um contrato vigente até o ano letivo de 2015/2016. Na prática, o contrato aponta várias metas à escola, a fim de compreendê-la como proponente de uma estrutura pedagógica capaz de inspirar outras instituições e quiçá reformular o sistema como um todo.

Início e duração: 1976 até os dias atuais.

Local: Município de Santo Tirso, em Portugal

 

Resultados e inspirações

Além da autonomia da escola à organização curricular e pedagógica do Ministério, a Escola da Ponte influenciou a aprovação do Decreto de Lei 6/2001, de 18 de janeiro de 2001, sobre a Reorganização Curricular do Ensino Básico, que deu espaço a outros modelos de escolas públicas.

 

Aluno-professor

Na Escola da Ponte, muitos dos professores foram alunos da escola e tornaram-se ávidos apaixonados pela proposta, reestruturando-a continuamente, ao passo que os tempos e estudantes se transformam.

O educador José Pacheco, um dos idealizadores da proposta, entendeu que a comunidade estava tão apropriada do “Fazer a ponte” e tão capaz de reconstruí-lo diariamente, que acabou deixando a direcção da unidade e rumou para o Brasil, para apoiar a Escola Âncora, em Cotia (SP). Inspirada na proposta portuguesa, a escola atende gratuitamente alunos na mesma perspectiva de construção de autonomia, abolindo provas, ciclos e séries e reunindo os estudantes como educadores de seus pares.

Na mesma perspectiva, desde 2004, a Escola Municipal Desembargador Amorim Lima e, desde 2008, a Escola Municipal Presidente Campos Sales, localizadas em São Paulo, reconfiguraram seus projectos pedagógicos, substituindo a estrutura das salas de aula e assumindo os estudantes como protagonistas da aprendizagem.

 

Fonte:

https://educacaointegral.org.br/experiencias/escola-da-ponte-radicaliza-ideia-de-autonomia-dos-estudantes

Texto adaptado por: Profª Eliane Ap. Zulian Delázari