Cantinho do pensamento: estereótipo do castigo camuflado

Postado por inovar 04/07/2023 0 Comentários

Cantinho do pensamento: estereótipo do castigo camuflado

 

 

 

A história de uma criança começa a partir dos seus primeiros dias de vida quando ela descobre e passa a reconhecer os carinhos e cuidados das pessoas conhecidas. Toda história de uma criança deve ser construída com afecto e cuidado para que ela se torne um adulto saudável e eficiente em tudo o que se dedicar a fazer.

 

Há muito tempo...

 

Houve um tempo em que as crianças não eram reconhecidas como seres humanos que deviam participar das reuniões familiares.

 

As crianças viviam trancadas em seus quartos longe das visitas e dos parentes próximos. Eram vistas como terríveis para lidarem com os mais velhos. Esse tempo durou muito e as crianças sofreram diversos tipos de abusos físicos e psíquicos.

 

Décadas passam e as coisas mudam

 

As mudanças vieram com o passar das décadas, mas não foram muitas. As crianças ainda eram vistas como birrentas e briguentas. Na verdade, eram incompreendidas pelos adultos. Deixadas em segundo plano, as suas palavras e opiniões nunca eram validadas pelos familiares. Não tinham voz entre os parentes.

 

Para amedrontar as crianças, com o passar dos anos, inventaram um tal cantinho do castigo em casa e na escola. A criança desobediente ia directo para esse cantinho que era um lugar estranho e doído para ela. Quem ia para o cantinho do castigo ficava estigmatizada pelas outras. Era vista como perturbadora da ordem. As demais crianças morriam de medo de passarem pelo cantinho do castigo.

 

Em casa, os pais inventaram também um cantinho do castigo que é um lugar sem nada por perto, muitas vezes sem a luz do sol onde a criança fica de frente para a parede durante horas até que se redime. Era e é ainda um verdadeiro castigo e tormento para as crianças que gostam de brincar, pular, correr, espalhar os brinquedos pela casa inteira, gritar, fazer perguntas e pular muros, mas os pais não entendem que isso é coisa de uma criança saudável que está a gastar a sua energia necessária para o crescimento.

 

Nos últimos anos, o cantinho do pensamento passou a ser um local para a criança pensar e reflectir sobre a sua desobediência. Justo as crianças que passam a maior parte da infância a pensar coisas sobre os adultos.

 

O cérebro infantil

 

 

 

Um ponto-chave das pesquisas sobre o cérebro infantil é o chamado córtex pré-frontal (região na frente do cérebro, logo atrás da testa, é uma área do cérebro que passa pelo período mais longo de desenvolvimento).

 

É a área do cérebro que nos ajuda a pensar racionalmente, controlar impulsos, reflectir sobre sentimentos e gerenciar nosso corpo e emoções.

 

Os cientistas descobriram que, durante toda a infância, mas sobretudo nos primeiros anos de vida, o córtex pré-frontal está imaturo, está nos estágios mais rudimentares do desenvolvimento nessa idade.

 

Ou seja, do ponto de vista fisiológico, a criança ainda não é capaz de controlar a maior parte das suas reacções, porque tem um controle ainda inconsistente delas. Quando é tomada por emoções difíceis, como frustração, raiva ou medo, seu corpo reage, por exemplo, "explode" em crises de birra.

 

Ao contrário das crenças populares, crianças pequenas que não cumprem o que é pedido, perdem o controle de suas emoções ou se distraem facilmente não são 'crianças más' nem estão sendo intencionalmente briguentas ou não-cooperativas. Na prática, as crianças ainda têm pouco controle sobre as reacções emocionais do seu corpo.

 

As pesquisas apontam que é só pelos 20 e poucos anos que o córtex pré-frontal do cérebro fica plenamente formado, o que também explica por que adolescentes são famosos por nem sempre tomarem as melhores decisões ou terem grande dificuldade em controlar seus impulsos.

 

Mas, mesmo tendo isso em mente, como lidar com os momentos em que as crianças perdem o controle ou se recusam a cumprir tarefas do dia-a-dia?

 

Compreender os sentimentos e seus gatilhos é uma habilidade de vida


 

Comum sobretudo na Educação Pré-Escolar, essa prática nada mais é que uma forma disfarçada de castigo sem nenhum carácter pedagógico, pois retirar a criança do convívio com a turma e simplesmente isolá-la não ataca as causas do problema que a levou até lá. Além disso, nessa fase, as crianças já sabem usar mecanismos automáticos para resolver os problemas que criam - como pedir desculpas ou dizer que vão mudar -, mas ainda não aprenderam que essas estratégias de reparação têm de ser coerentes com um sentimento real de arrependimento e disposição em transformar atitudes. É essa lógica que impera quando um pequeno é mandado para o cantinho do castigo: assim que é punido, ele começa a criar estratégias para sair dali, respondendo, quase sem reflectir sobre o que aconteceu, coisas como “Já pensei. Posso sair agora” e “Desculpe-me. Prometo que não vou fazer mais isso” sem necessariamente acreditar no que está a dizer. Para que ele entenda por que determinada atitude está errada, é preciso que o professor o ajude em um processo de tomada de consciência. No caso de uma briga, por exemplo, é mais interessante colocá-lo para ouvir como o colega agredido se sentiu. Também é preciso explicar que, quando alguém pede desculpas, quer dizer que está arrependido de verdade. Pergunte: “É isso mesmo que queres dizer?” Dessa forma, é possível demonstrar concordância com as regras que regem a convivência em grupo.

 

Toda criança necessita ficar sozinha no lugar que ela escolher e não num determinado lugar ao qual damos o nome “bonito” de cantinho do pensamento. Pensar o quê?

 

Quem pensa enquanto está com raiva, aborrecido, triste, ameaçado, com medo, ansioso, a chorar e incompreendido? Quem consegue pensar quando está com receio de levar uma palmada se desobedecer novamente.

 

As ameaças dos pais e professores à criança são tantas que ela fique naquele cantinho do pensamento sozinha, abandonada, largada de tudo e de todos sem saber o que está a fazer ali. Ela não consegue pensar em coisas boas, pois o seu desejo é sair o mais rápido possível desse tal cantinho.

 

Para acalmar uma criança é preciso carinho, amor e cuidado. Toda mãe, pai ou professor deve saber lidar com as diferentes maneiras que as crianças têm de expressarem seus sentimentos e emoções. Elas gostam de brincar e correr. Até os seis anos de idade toda criança só deveria brincar.

 

Todo castigo é sempre algo que desmotiva, que cobra, que ordena, que impõe. A criança não está acostumada a ser cobrada por coisas que não sabe como reagir. As suas emoções muitas vezes são novas demais e elas precisam de alguém que as ajude a lidarem com o que sentem. Tem criança que sente o coração disparar na hora da birra e não sabe o que fazer com aquela arritmia cardíaca porque não tem a quem perguntar sobre o que está a sentir já que foi abandonada naquele cantinho do pensamento, sozinha.

 

É preciso acabar com as formas de castigo que traumatizam as crianças

 

 

Pai, mãe, professor, não criem cantinho do pensamento em casa ou na escola criem ambientes onde a sua criança possa se sentir segura e confortável. Que ela possa ser estimulada a pensar sobre a sua desobediência de uma forma saudável e lúdica. Coloca a tua criança no colo, abrace-a, dá carinho, espera que a raiva dela passe, espera que ela pare de chorar e fazer birra. Afinal, tudo passa.

 

Não tenha vergonha dos demais adultos se a tua criança desobedecer a você em público ou fizer birra no supermercado. Só não vai entender a tua criança quem nunca precisou educar uma. Não dá ouvidos a críticas ou comentários maldosos. As crianças já sofrem demais com as incompreensões dos seus sentimentos, do crescimento do corpo e desenvolvimento do intelecto. Elas precisam de tempo e espaço para descobrirem que o crescimento faz parte da vida.

 

A maior dor que uma criança pode sentir em relação a um adulto é quando ela sofre incompreensão. Sem contar que a incompreensão vem sempre acompanhada de um castigo. Os pais adoram castigar as crianças, alguns professores também. Como se elas fossem culpadas por não entenderem bem as coisas ou por não aceitarem fazer o que desejamos.

 

É uma pena que ainda exista escola e pais que tenham esse cantinho do pensamento. Às vezes a escola coloca brinquedos e livros no cantinho do pensamento para a criança e está a char uma boa ideia. Não é uma boa ideia. Enquanto a criança for obrigada por você para estar num lugar onde ela não gostaria, a fazer o que ela não quer, nunca será bom nem para ela e nem para você.

 

Uma casa ou escola com crianças deve ser toda dela. Ela deve poder entrar em todos os compartimentos do lugar e ser orientada onde pode mexer ou não, e o motivo. O lugar deve ter espaço para a criança poder se movimentar à vontade e espalhar os seus brinquedos como quiser.

 

Pai e mãe, incentiva a tua criança a pensar ao conversar com ela confortavelmente antes de dormir sentados na cama, na poltrona da sala, no chão da varanda ao redor dos brinquedos. Faz perguntas que estimulam o pensar crítico da criança. Elabora junto com a criança porquês que a faça ficar intrigada e querer saber mais coisas a respeito de determinado assunto.

 

Toda criança é desobediente porque ela não sabe direito diferenciar o certo do errado. Para ela em tudo pode mexer. Ainda não foi concebido no seu pensamento o que é errado e feio. No mundo da criança há muita incompreensão e medo dos adultos quando ela é o tempo todo ameaçada de castigo das mais diversas formas. O importante é que seja criada uma forma de diálogo para que essa desobediência tenda a diminuir com o passar dos meses.

 

É notório que existem crianças difíceis de serem educadas, mas tudo que recebe amor acaba a ser conquistado. Não é amor colocar a tua criança no cantinho do pensamento. É amor sentar-se com ela no teu colo enquanto chora para ir para a rua e o horário não permite. Diga isso para a criança e espere que ela processe a informação, logo que isso acontecer o choro vai passar e ela se distrairá com outra coisa.

 

Substitua o cantinho do pensamento por uma sala cheia de livros, com janelas abertas, brinquedos espalhados por todos os cantos, paredes coloridas onde a criança possa se sentir respeitada, amada, cuidada. Um lugar para onde ela possa escolher ir e ficar o tempo que quiser e sentir-se bem. Que não lhe seja ordenado por ninguém ficar presa neste lugar. Com portas e janelas abertas para ela se sentir livre.

 

Se a sua casa for pequena decore o quarto da sua criança com bichinhos de pelúcia, bonecos de pano, brinquedos simples, mas que vão alegrar o dia-a-dia dela. Os brinquedos se tornam parte da vida das crianças. Tem muita criança que se apega a um boneco ou boneca como se fosse seu irmãozinho mais velho ou mais novo, conforme as suas necessidades.

 

É possível que toda criança desobediente só está a mostrar o seu lado saudável de querer aquilo que tanto deseja mesmo sem nem saber o que vai fazer direito com aquilo. Cabe aos adultos saber lidar com as desobediências e as birras. Nenhuma criança é terrível ou assustadora que não possa ser educada com carinho e cuidado.

 

“O amor é como a criança: deseja tudo o que vê.”

                                                                     William Shakespeare

 

Que pais e educadores nunca mais coloquem as crianças de castigo só porque desejaram e fizeram birra ou desobedeceram em público por algo que não podiam lhes comprar ou oferecer.

 

Educar uma criança não é somente colocá-la na escola e alimentá-la. Vai muito além das pequenas coisas do dia-a-dia. Educar é antes de tudo respeitar e tentar compreender o que não se consegue dizer facilmente em palavras e, por isso o choro.

 

O cantinho do pensamento só faz com que as crianças deixem de pensar, parem de pensar, tenham medo de pensar.

 

 

Fontes:

https://www.neipies.com/o-caminho-do-pensamento-causa-dores-e-traumatiza-a-crianca/

https://g1.globo.com/educacao/noticia/2022/08/06/cantinho-da-disciplina--funciona-para-educar-criancas.ghtml

https://novaescola.org.br/conteudo/1203/assim-nao-da-colocar-a-crianca-num-canto-para-pensar

Texto adaptado por: Profª Eliane Ap. Zulian Delázari